Piso nacional para entregadores de aplicativos e mototaxistas – Avanço ou prejuízo velado?

Guilherme Boulos: objetivo é combater a precarização do trabalho

O Projeto de Lei 2479/25, atualmente em análise na Câmara dos Deputados, propõe a criação de um piso nacional para entregadores de aplicativos e mototaxistas, com remuneração mínima, seguro contra acidentes e medidas para coibir práticas abusivas das plataformas digitais. À primeira vista, a iniciativa parece uma importante conquista para garantir direitos básicos a uma categoria amplamente precarizada. No entanto, um olhar crítico à trajetória legislativa recente relacionada a categorias de trabalhadores vulneráveis, como empregadas domésticas e profissionais de enfermagem, revela que avanços formais nem sempre se traduzem em ganhos efetivos para esses trabalhadores. Essa reflexão é essencial para avaliarmos o real impacto do PL 2479/25.

O contexto histórico: Lições das Leis da empregada doméstica e da enfermagem

Nos últimos anos, o Brasil avançou ao reconhecer direitos e estabelecer pisos salariais para categorias historicamente negligenciadas. Dois exemplos paradigmáticos são a regulamentação do trabalho das empregadas domésticas (Lei Complementar nº 150/2015) e o projeto que criou o piso nacional da enfermagem, aprovado em 2022. Apesar das intenções progressistas, essas regulamentações geraram uma série de efeitos controversos.

Para as empregadas domésticas, a ampliação de direitos formou uma base legal mais sólida, mas também levou muitos empregadores a optar por jornadas informais ou redução do quadro de funcionários, por não conseguirem arcar com os custos trabalhistas ampliados. Assim, parte dessa mão de obra simplesmente ficou fora da formalidade, perdendo as proteções que a lei buscava garantir.

No caso da enfermagem, o piso salarial nacional foi uma vitória significativa após décadas de luta. Ainda assim, hospitais públicos e privados enfrentaram dificuldades em adequar seus orçamentos, o que resultou em demissões, terceirizações e aumento da sobrecarga de trabalho sobre os profissionais restantes. Isso provocou uma crise na área da saúde que, ironicamente, afetou a própria qualidade do atendimento à população.

Parallelos e riscos do PL 2479/25

O PL 2479/25 busca estabelecer um valor mínimo de R$ 10 por entrega de até 4 km, com adicionais por distância e tempo de espera, além de seguro e medidas para evitar punições abusivas. Embora os objetivos sejam legítimos e necessários diante da precarização já denunciada pelo próprio deputado Guilherme Boulos, a experiência mostra que a criação de pisos e normas rígidas pode gerar um impacto econômico imediato nas plataformas e contratantes.

O setor de entregas por aplicativo lida com margens estreitas e um modelo baseado em alta rotatividade e flexibilização. Impor um piso rígido e obrigações adicionais como seguro e pontos de apoio pode significar:

  • Aumento dos custos repassados para os consumidores: Com o reajuste dos valores mínimos, os preços finais das entregas podem subir substancialmente, tornando o serviço menos competitivo e acessível.
  • Redução da oferta de trabalho: As plataformas podem reduzir a quantidade de entregadores contratados, ou ampliar os critérios para aceitação, dificultando o acesso de muitos trabalhadores à atividade.
  • Migração para informalidade: Assim como ocorreu com as empregadas domésticas, parte dos profissionais pode ser excluída do modelo formal de entrega, ficando sem os direitos e garantias previstos pela lei.
  • Automação acelerada: O aumento dos custos pode estimular as empresas a investir ainda mais em tecnologias automatizadas, como drones e robôs, substituindo trabalhadores humanos.

Precarização disfarçada

Apesar da proteção aparente, o piso nacional e as obrigações legais podem não resolver as questões estruturais da categoria, como jornada extenuante, falta de Segurança no Trabalho e ausência de direitos trabalhistas tradicionais como férias, 13º salário e FGTS — ainda que esta proposta caminhe para alguma regulamentação mais ampla.

Além disso, as sanções previstas, como multas e suspensão das atividades, são necessárias, mas sua efetiva aplicação pode ser dificultada pela alta fragmentação do setor e pela flexibilidade excessiva das plataformas, que se defendem com contratos de trabalho autônomo, dificultando a fiscalização.

O que deveria ser considerado

Para evitar um cenário de retrocesso, é fundamental que o debate vá além do valor da remuneração por entrega e inclua:

  • Reforma ampla das relações de trabalho nas plataformas: Com discussões sobre vínculo empregatício, garantias previdenciárias e regulação específica para o trabalho em aplicativos.
  • Programas de capacitação e acesso a direitos sociais: Que preparem os entregadores para condições diversas de mercado e ofereçam proteção social, como seguro-desemprego e assistência médica.
  • Participação ativa dos trabalhadores: Em fóruns e negociações para validar as medidas propostas, garantindo que elas atendam às necessidades reais da categoria e não apenas interesses corporativos ou eleitorais.
  • Balanceamento entre proteção e sustentabilidade econômica: Para que as plataformas possam manter a oferta de trabalho e os usuários tenham acesso a serviços de qualidade a preços justos.

O PL 2479/25 tem potencial para ser um avanço importante, mas sozinho não basta para resolver os problemas crônicos enfrentados pelos entregadores de aplicativos. A experiência das regulamentações anteriores para empregadas domésticas e profissionais de enfermagem serve como alerta: sem um planejamento cuidadoso, a legislação pode acabar contribuindo para uma maior precarização, exclusão do mercado formal e dificuldades financeiras para trabalhadores e empresas.

Assim, é imprescindível que legisladores, representantes dos trabalhadores e setores envolvidos atuem com responsabilidade e visão de longo prazo, garantindo que este projeto não se transforme em mais um marco legal que, no papel, promete proteção, mas na prática agrava as vulnerabilidades e contribui para o esvaziamento das promessas de justiça social.

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