A Comissão de Direito Internacional da OAB SP esclarece que o uso da Lei Magnitski, dos Estados Unidos, contra Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) fere o Direito Internacional, na medida em que atenta contra a soberania nacional, fere o princípio da independência do judiciário e de não-intervenção nos assuntos internos, bem como deturpa a aplicação extraterritorial de leis pró-direitos humanos.
A Lei Magnitsky faz parte de uma nova geração de medidas legais de sanção contra graves violações de normas internacionais (GloMag), sendo aplicada em especial contra abusos graves de direitos humanos e corrupção sistemática com possíveis impactos transnacionais.
Tendo em vista que estados possuem a obrigação de punir e prevenir violações a normas peremptórias do direito internacional, leis com eficácia extraterritorial não são uma novidade, sendo encontradas por exemplo no Reino Unido (2020), Canadá (2017) e na União Europeia (2021). Essa nova geração de programas de sanções tem como objetivo superar os desafios das sanções a países, voltando-se a sanções potencialmente mais eficazes contra seus perpetuadores individuais.
Desde a criação da Lei Magnistiki, já foram sancionadas mais de 475 pessoas e organizações de 45 países.
Estas sanções visavam indivíduos e entidades estrangeiras responsáveis ou envolvidas em graves violações de direitos humanos e atos de corrupção significativa como assassinatos, tortura, detenções arbitrárias, violência baseada em gênero e tráfico humano.
Entre os casos mais emblemáticos, estão as sanções a líderes militares de Mianmar pelo genocídio dos rohingyas, autoridades chinesas responsáveis por abusos contra uigures em Xinjiang e envolvidos no assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.
No entanto, aplicar a Lei Magnitsky a um juiz da Suprema Corte de outro país, deturpa o propósito da lei em específico e do sistema de sanções contra violações de direitos humanos. Impor sanções, de forma desproporcional, contra um magistrado por atos judiciais, devidamente validados pelo sistema judicial interno, configura intimidação institucional em violação ao princípio internacional de independência do judiciário, previsto em tratados dos quais o Brasil é parte, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), reforçada em resoluções da ONU.
O próprio sistema interamericano de direitos humanos, por meio da Comissão e da Corte Interamericana, tem reiteradamente afirmado que a independência do Poder Judiciário é condição indispensável para a democracia e para o devido processo legal. Também a Carta Democrática Interamericana, da OEA, reconhece esse princípio como elemento essencial do Estado de Direito. A soberania nacional está atrelada à condição de ser um estado no direito internacional.
O Brasil possui o direito de não sofrer interferência nos seus assuntos internos, inclusive no funcionamento independente de suas cortes.
A Convenção de Montevideo de 1933, reconhecida como direito costumeiro, já prevê isso, afirmando expressamente, no Artigo 3º, a soberania e o princípio da não intervenção para fundamentação da existência de um Estado. Tal preceito é materializado no direito interno brasileiro por meio, por exemplo, do Artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), o qual impõe um limite nítido a atos estatais estrangeiras que “não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional”.
As empresas nacionais e estrangeiras presentes no Brasil devem respeitar este preceito.
A recente decisão do Presidente Donald Trump de utilizar a Lei Magnitsky contra um magistrado brasileiro revela, ademais, as contradições da tradição jurídica e diplomática dos Estados Unidos em matéria de direitos humanos. Ainda que os EUA tenham ratificado tratados fundamentais como o PIDCP, sua adesão tem sido historicamente marcada por reservas interpretativas (RUDs) e pela não ratificação de instrumentos centrais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
O uso seletivo de mecanismos de sanção, voltados sobretudo a adversários políticos ou países do Sul Global, evidencia um preocupante duplo padrão na aplicação do regime internacional de direitos humanos.
Tal prática deslegitima os instrumentos multilaterais e os princípios universais que deveriam fundamentá-los, convertendo-os em ferramentas de intervenção geopolítica.
No caso em questão, a distorção do regime de sanções em nome dos direitos humanos serve, na realidade, à tentativa de interferência em decisões soberanas e em instituições judiciais independentes.
A Comissão de Direito Internacional da OAB SP reitera que apenas o respeito à lei e às normas internacionais pode criar um mundo baseado em regras aplicáveis a todos os países.
Intervir, com uso equivocado de leis de aplicação extraterritorial, no sistema judicial de outro país viola as regras mais elementares da ordem global e do Estado Democrático de Direito.
Thiago de Souza Amparo
Presidente da Comissão de Direito Internacional OAB SP