A tarde desta quinta-feira (25) de natal é especial para a população de rua de São Paulo. É dia de almoço na Casa de Oração do Povo de Rua. O almoço conta com a participação de Julio Lancelloti, padre conhecido por seu trabalho junto à população em situação de rua, para quem promove acolhimento, assistência social e alimentação a quem necessita.

E hoje foi mais um desses dias. Lancelotti chegou no início da tarde. Em qualquer ceia de natal, um lugar cheio de gente é sinônimo de fartura. Mas na Casa de Oração do Povo de Rua, isso também traz um significado melancólico. Afinal, mais pessoas estão vivendo nas ruas.
“Está sendo cada vez mais difícil a situação de polarização que a gente vive, a situação de desafio e de desigualdade. A situação é bem difícil porque o número da população de rua cada vez aumenta mais”, lamenta. Ao mesmo tempo, ele está à vontade entre os seus. Entre aqueles que escolheu ajudar.
“Esse é o espírito do Natal, o sentido do Natal, acolher aqueles que ninguém acolhe, olhar para aqueles que ninguém olha”.
Logo após chegar, Padre Júlio fez uma oração e o almoço foi servido. As crianças primeiro, depois as mulheres. Os homens, maioria, esperam pacientes. Ninguém fala alto, nem desrespeita os demais. Almoço de família.
Acolhimento

Casa de Oração do Povo da Rua, em São Paulo, conta com o apoio de voluntários para atender a população de rua. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Muito antes de Lancelotti chegar, porém, o local já estava cheio. Gente de várias partes da cidade foram ter ali seu momento natalino. A Casa de Oração do Povo de Rua é uma construção que junta infraestruturas de apoio à população de rua da cidade. São cerca de 80 mil pessoas com esse perfil no levantamento mais recente, do Observatório da População de Rua.
Um dos voluntários da Casa é Ana Maria da Silva Alexandre, coordenadora do lugar, com 26 anos atuando por lá. E há muito trabalho por fazer. Na cozinha os dez voluntários se revezam. Lavam a louça do café da manhã, servido para cerca de cem pessoas. Cortam o pernil para o almoço, preparam salada, farofa, arroz. Cortam frutas e panetones, estes para servir por volta do meio-dia, para os que já estiverem com fome. Há um presépio, montado pelos frequentadores, e também um espaço com roupas doadas. Ali é possível encontrar roupas de todos os tipos, masculinas, femininas e infantis.
“Para mim é maravilhoso ver que essas pessoas que não tem uma casa para ir hoje, não tem uma família, porque dia 25 é uma data muito feliz para quem tem família, estar com a família, mas muito triste para quem não tem, para quem passa sozinho na calçada. Então a casa, eles sabem que é um espaço que está aberto”, conta.
Ela fala com alegria nos olhos dessa que é sua segunda família. “Então, não é só o comer e beber, mas é sentar-se à mesa, conversar, encontrar alguém que já conhecia, ou fazer novas amizades. E ter esperança, que é uma das mensagens mais importantes do natal. Assim como Jesus, nascido sem teto, também buscam, para si, sempre uma esperança”.
O ano de 2025 se encerra para os voluntários da Casa deixando lembranças pouco agradáveis. “Foi difícil, pelas coisas que a gente vê acontecendo. Muita reintegração de posse, muita gente que estava em ocupações e a gente vê voltando para a rua. O descaso. A Cracolândia, que dizem que acabou, mas que só foi empurrada para as periferias”, afirma.
Vício em drogas e noites na rua
Uma das pessoas que aguarda o almoço é Ronaldo*. De volta nas ruas há duas semanas, após alguns meses internado. Havia ficado dez anos longe das drogas, mas teve uma recaída esse ano, admite. “Foi um ano difícil, sabe. Mas vai melhorar”. Ajuda na montagem de kits com produtos de higiene, chinelos. Para as mulheres, bolsas e maquiagem, doadas por comerciantes da região central. E brinquedos, para as crianças. Os kits seriam distribuídos pouco depois.
Onde dormir é uma preocupação diária de Luna de Oliveira, uma mulher trans, e Emerson Ribeiro. O casal passa seu primeiro natal juntos. Essa semana já tentaram lugar em quatro abrigos, mas em todos uma dificuldade: não há vaga para os dois. Para ela, o preconceito por ser uma mulher trans piora a muito situação. E também dificulta para encontrar emprego.
Emerson é servente de pedreiro. Passou um tempo mal, consumindo drogas. Chegou ao crack, mas conta orgulhoso que está há mais de um mês sem nenhuma droga, muito por conta da ajuda da companheira. Ele busca nova chance, uma vaga de trabalho em um canteiro de obras. Sabe fazer massa, assentar piso. O objetivo é se organizarem e saírem da rua, juntos, e para casarem. Natural de Mogi das Cruzes, na região metropolitana, tem dormido com ela nas ruas próximas, na Luz.

Local é frequentado por pessoas que lá encontram algum conforto em uma rotina dura de vício em drogas, preconceito e abandono. Foto:Rovena Rosa/Agência Brasil
Luna é natural de Itaquera, zona leste da capital. Alguns anos mais velha que o companheiro, tem 31, muitos na rua, desde que as brigas com sua família a fizeram deixar a casa e ir para o centro. Desenvolta, tem o sonho de trabalhar com televisão. “A gente tá tentando se reerguer”, diz ela, que tira algum dinheiro de materiais reciclados.
Ela frequenta a Casa de Oração desde 2017 e já esteve lá em natais anteriores, mas ele não conhecia o espaço. “Está sendo maravilhoso para mim, eu estou muito feliz. Achei que eu ia passar o natal sozinha mas, graças a Deus, ele apareceu na minha vida”, conta. “Trouxe ele para conhecer o Padre Júlio, para conhecer a coordenação, e a gente está sendo muito bem tratado aqui, graças a Deus”.
Nascido numa comunidade na zona norte, perto do Pico do Jaraguá, Nilton Bitencourt foi parar na rua após a morte da mãe. Filho único, se viu passado para trás no espólio, perdendo o direito à casa onde morou por mais de uma década com ela, em Itanhaem. De volta à São Paulo, usou drogas, foi morar no centro. “Este natal está mais cheio aqui, mais famílias. Tá bonito”.
Trabalha na rua 25 de março, descarregando caminhões. Há quase uma década mora em barracas, sempre pela região. Para o ano não quer muito: arrumar uma ponte dos dentes, que está frouxa e querendo escapar. Por isso que trabalhar já amanhã. “Espero que não seja caro, ninguém merece, mas não tem jeito, vou ter de arrumar isso”.
Esse foi o almoço de natal de 2025. No ano que vem haverá mais. Porque a desigualdade, o preconceito e a miséria continuará levando pessoas para as ruas. Quando a reportagem pergunta a Lancelotti qual mensagem é importante passar nesse natal, ele diz, sem titubear: “Enquanto a mudança não vem, seja diferente. Esteja com os pobres”.
Edição:Marcelo Brandão/Guilherme Jeronymo – Repórter da Agência Brasil




